Mesmo sem nunca ter tido problemas relacionados à saúde bucal, a visita ao dentista uma vez ao ano sempre fez parte da rotina de cuidados da assistente social Karin Cristina Bezutti, 36, de Jundiaí (SP). Ao contrário da maioria dos brasileiros, ela faz parte de um seleto grupo que se preocupa com a prevenção de doenças e não apenas com o tratamento de algum problema quando já não há muito o que fazer. O que Karin não sabia é que a sua ida ao dentista ficaria ainda mais frequente na gravidez. Isso porque ela passou a ter uma leve sensibilização nos dentes, que a partir do segundo trimestre evoluiu devido à exposição da raiz dos dentes. “A sensibilidade passou a ser uma dor mesmo, a ponto de ficar complicado até encostar a escova nos dentes”, conta ela, que é mãe de Rafaela, 3, e João, 1.
Por estar grávida, o dentista disse que não havia muito a ser feito: alguns medicamentos não poderiam ser usados e era melhor esperar o bebê nascer e ver como o caso evoluiria. “As recomendações dele foram para que eu fizesse alguns exercícios com a escova, de modo a não causar atrito nos dentes sensibilizados, e trocasse o creme dental convencional por outro específico para a sensibilidade. Foi o que fiz”, diz.
Tempos depois, Karin engravidou do segundo filho. Os cuidados com a sensibilidade continuavam, mas aí vieram também pequenos sangramentos na gengiva. “Àquela altura, já doía bastante, especialmente para escovar os dentes.” Ao procurar o motivo do sangramento, Karin descobriu que as gestantes estão mais predispostas à gengivite, que é a inflamação da gengiva. O odontopediatra Gabriel Politano, diretor do departamento de odontologia para gestante e neonatos da Associação Brasileira de Odontopediatria, e coordenador das equipes do Ateliê Oral Kids (SP), afirma que, de fato, a gengivite é um clássico na gravidez. “Isso porque o aumento dos hormônios que circulam no corpo durante a gestação pode levar a maior reação inflamatória na gengiva.”
Entre os problemas que podem comprometer a cavidade oral, ocasionados pelas mudanças fisiológicas durante a gravidez, estão ainda: aumento da salivação, enjoos e vômitos frequentes, maior predisposição para lesões causadas por cáries e maior vascularização sanguínea, podendo causar não só a gengivite, como a periodontite (inflamação e infecção dos ligamentos e ossos que são suporte aos dentes).
O obstetra Braulio Zorzella, de São Paulo, reforça que na gravidez a imunidade é mais baixa para que o corpo materno não rejeite um corpo estranho para ela, que é a placenta. “Sendo assim, ela fica mais suscetível a infeções, que quando ocorrem na gengiva, aumentam a vascularização e consequentemente sangramento. Mas, independente das infecções, a gengiva fica mais inchada na gravidez e isso pode propiciar sangramento ao escovar”, diz.
E é justamente por estar mais suscetível aos problemas bucais que a gestante deve fazer não só o pré-natal convencional, como também o pré-natal odontológico. “A saúde bucal tem total relação com a saúde geral, de modo que não dá para ser saudável sem que a cavidade bucal esteja saudável. Entender a relevância de um atendimento pleno durante a gestação é a maneira mais clara e completa de ter um período gestacional seguro e saudável para a mãe e o bebê”, diz a odontopediatra Maylis Guitton, do Rio de Janeiro, que criou a página “Pre-natal odontológico”, no Facebook, após perceber a necessidade das gestantes entenderem o que é esse cuidado.
Mudança de hábitos
Além da predisposição fisiológica aos problemas bucais, vale lembrar que a gestante tende a ficar mais ansiosa, o que faz com que ela coma mais ao longo do dia e até durante a noite, consumindo muito açúcar. “Sendo assim, normalmente há um déficit na higiene bucal, pois em vez de escovar mais os dentes para acompanhar esse ritmo da ingestão de alimentos, ela continua com os mesmos hábitos de higiene ou até os diminui, pois está mais irritada, cansada ou dormindo mais. O resultado é maior formação de placa bacteriana ao redor dos dentes, podendo causar cárie ou até mesmo a periodontite”, lembra Maylis Guitton.
Diante desse cenário, o pré-natal odontológico é muito importante. Tanto que o Ministério da Saúde e a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) disponibilizam na “Caderneta da Gestante” e no “Cartão da Gestante”, respectivamente, uma página inteira voltada aos cuidados odontológicos que a grávida deve ter. Outra medida para a conscientização da importância da saúde bucal na gestação está na Política Nacional de Saúde Bucal, criada em 2003 pelo Ministério da Saúde, e que, entre outras coisas, orienta a realização da consulta odontológica assim que a mulher iniciar o pré-natal convencional. O objetivo é receber uma avaliação da condição dos tecidos moles da boca, de doença periodontal e cárie dentária. Somando-se a essa iniciativa, em 2012 foi lançado o Manual de Pré-Natal de Baixo Risco, no qual consta a assistência odontológica como parte integrante da atenção pré-natal.
Barreiras para a realização do pré-natal odontológico
O grande xis da questão é que pouco se ouve falar sobre a necessidade do acompanhamento odontológico na gravidez. E também falta certa parceria entre obstetra e dentista, no sentido de fazer esse direcionamento. O resultado é que muitas gestantes simplesmente não sabem que deveriam ter sido orientadas a respeito da saúde bucal. Pesquisa publicada em 2016 na revista Saúde em Debate, mostrou que 66% das grávidas relataram não ter recebido orientação ou cuidado de saúde bucal durante o pré-natal. A cirurgiã-dentista Katiéli Fagundes Gonçalves, especialista em saúde da família e comunidade (ESP/RS), mestre em saúde bucal coletiva pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), e pesquisadora do pré-natal odontológico, diz que nos últimos anos, iniciativas como as citadas acima, juntamente com a cobertura de equipes de saúde bucal nas estratégias de saúde da família, fizeram com que os acessos aos serviços de saúde bucal aumentassem. De acordo com o Programa de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB), a prevalência da utilização de serviço de saúde bucal no pré-natal no período de 2011 a 2012 foi de 45,9%, elevando-se para 51,9% no período de 2013 a 2014. Porém, ainda há poucos indicadores relacionados ao pré-natal odontológico. “E os poucos que existem necessitam de aperfeiçoamento. Atualmente o marcador mais utilizado é a primeira consulta odontológica da gestante, mas para atingir uma integralidade é necessário muito mais que uma consulta”, reforça a pesquisadora, que é autora do estudo “Utilização de serviço de saúde bucal no pré-natal na atenção primária à saúde: dados do PMAQ-AB”, publicado ano passado na revista da Associação Brasileira de Saúde Coletiva.
Os riscos que a gestante corre
Diversos estudos relacionam a periodontite ao parto prematuro. E desde que a primeira pesquisa foi publicada, em 1996, o tema é alvo de estudos. Uma revisão sistemática da literatura mundial, feita pela Universidade Pedagógica e Tecnológica da Colombia (UPTC), que incluiu a 3104 artigos, revelou que entre 20 estudos selecionados, envolvendo um total de 10.215 mulheres, as grávidas com periodontite têm o dobro de risco de ter parto prematuro. A revisão científica, publicada em fevereiro desse ano, mostrou que a associação entre a infecção periodontal e o aumento do risco de parto prematuro foi encontrada em 60% dos estudos. Segundo o odontopediatra Gabriel Politano, comprovar a relação entre o parto prematuro e a periodontite é fácil. “A prostaglandina, hormônio produzido durante o trabalho de parto e responsável pela contração, é o mesmo produzido quando há um processo infeccioso no corpo, adiantando a contração uterina e o trabalho de parto, que aconteceria apenas semanas mais tarde”, diz. A dificuldade, segundo o especialista, é interpretar o parto prematuro como resultado da periodontite, já que esse fator nem chega a ser considerado.
O obstetra Alberto Guimarães, mestre em ginecologia e obstetrícia pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), lembra dos riscos de um parto prematuro: “É um grande desafio para os profissionais de saúde, pois quanto mais prematuro, menos desenvolvido é o sistema nervoso central. É um bebê que já de cara vai depender de uma assistência muito grande. Vai precisar de medicamentos, UTI. O empenho da família também é grande em torno desse bebê, sendo necessário certa estrutura emocional”, diz.
A odontopediatra Maylis alerta que além dos partos prematuros, essa infecção disseminada pela corrente sanguínea pode levar a complicações como baixo peso do recém-nascido e pré-eclâmpsia (hipertensão arterial específica da gravidez). Politano reforça que a associação entre o problema bucal e a pré-eclâmpsia já é reconhecida na literatura científica. “Revisões científicas mostram que essa associação é correta. Inclusive minha tese de doutorado foi sobre esse risco”, conta.
Complicações agudas de problemas dentários, como a própria cárie também podem ter resultados bem preocupantes: “Quando a cárie está no esmalte do dente, ela é recente e tratável. O segundo passo é alcançar o canal do dente, causando bastante dor, porém, ainda possivelmente tratável. Porém, se a pessoa não procurar um dentista a tempo, essa cárie pode ir para a musculatura corporal e, em questão de dias, resultar numa infecção que acomete o corpo inteiro, levando à morte materna e fetal”, explica o odontologista.
Orientações do pré-natal odontológico
O pré-natal odontológico deve ser dividido em duas etapas. A primeira é realizada após o primeiro trimestre de gestação, e traz orientações, cuidados e tratamentos sobre a saúde bucal da gestante. Já a segunda, feita no último trimestre, é voltada aos cuidados com a saúde bucal do bebê. Essa última fase, inclui esclarecimento sobre o que fazer quando o dente do bebê nascer, a importância do aleitamento materno para a saúde bucal e como o uso de mamadeiras e chupetas pode refletir na formação dentária do bebê. A orientação acontece na gravidez justamente porque nos primeiros meses de vida do bebê, sua mãe terá pouco tempo para uma consulta com o dentista.
Entre outras orientações, o pré-natal odontológico inclui:
Cuidados básicos de alimentação A dieta da gestante deve ser equilibrada, uma vez que os dentes necessitam de minerais e começam a se formar a partir da 6ª semana de gravidez. Alimentos açucarados devem ser evitados para evitar ainda mais a formação de cáries.
Recomendações específicas Uma delas é não escovar os dentes logo após os vômitos, já que com a composição do refluxo, os dentes ficam um pouco mais “moles” na hora que ele acontece. E a escovação seguida pode danificar o esmalte do dente. O correto é fazer apenas um bochecho com água e esperar meia hora até fazer a escovação.
Exames clínicos Eles são necessários para verificar o que precisa ser tratado e, dependendo do momento gestacional, eleger o tratamento de urgência. “Isso inclui o exame radiográfico apenas se for de grande necessidade para ser resolvido. Já procedimentos cirúrgicos sem urgência ou estéticos devem ser deixados para depois que o bebê nascer, justamente pelo risco da exposição às bactérias”, diz Maylis. Alguns medicamentos ou produtos que precisam ser utilizados pelo dentista podem ser liberados apenas após o período de amamentação, pois podem ser passados pelo leite.
Limpeza para remoção de placa e tártaro Ela elimina qualquer foco de bactérias e infecção, prevenindo assim a temida doença periodontal, que é uma infecção com inflamação e sangramento da gengiva.
Mitos que dificultam a realização do pré-natal odontológico
Durante muitos anos, a grávida foi praticamente proibida de visitar o dentista, sob a afirmação que qualquer tratamento realizado poderia comprometer a saúde do bebê. “Esse é um mito que ainda traz rastros, tanto do ponto de vista da paciente quanto dos próprios obstetras. Antigamente, se a grávida precisasse de atendimento de um dentista, ele pedia que o obstetra autorizasse a consulta por meio de diversas justificativas documentadas. Isso acabou afastando ainda mais a gestante deste profissional, além de distanciar relacionamento entre dentista e obstetra”, conta Alberto Guimarães.
Também é comum que durante a gestação as mulheres se queixem de sentir os dentes mais frágeis, acreditando que o cálcio dos ossos vão para o desenvolvimento dos dentes de leite do bebê. O que é um outro mito, segundo a consultora da Coordenação de Saúde Bucal do Ministério da Saúde, Nicole Aimée. O cálcio que forma os dentes do bebê são provenientes da dieta da mãe. “O que acontece é que durante o período gestacional, as mulheres podem ter enjoos (principalmente matinais) e deixarem de fazer higienização correta dos dentes ou fazer de forma rápida, não eliminando a placa dentária, que aliada ao consumo mais acentuado de carboidratos, irá culminar no aparecimento de lesões de cárie”, esclarece.
Como a grávida deve se acomodar na cadeira do dentista?
Nos estágios mais avançados da gestação, a mulher precisa ser inclinada para o lado esquerdo em vez de permanecer muito tempo sentada ou deitada. “Isso porque quando a gestante está deitada de barriga para cima, o peso do feto comprime o diafragma e causa desconforto, inclusive respiratório”, diz Maylis. A odontopediatra chama a atenção também para o fato que o peso do feto faz compressão de dois vasos importantes que passam entre o feto e a coluna da paciente: a veia cava inferior e a artéria aorta. “A artéria aorta leva o sangue do coração para os membros inferiores, enquanto a veia cava inferior o traz de volta para o coração. E como a veia cava passa pelo lado direito do corpo, a paciente deve ficar inclinada para o lado esquerdo, melhorando assim o retorno venoso e diminuindo os riscos de complicações durante o atendimento.” Agora que você já sabe os benefícios e risco de não dar a devida atenção à saúde bucal durante a gestação, não espere para marcar sua consulta com o dentista. E compartilhe essa reportagem com outras grávidas. Como ficou claro aqui, atitudes simples podem prevenir diversas complicações para a mãe e o bebê!